ÿþ<html><head><meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1"><title>XXII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste</title><link rel="STYLESHEET" type="text/css" href="css.css"></head><body leftMargin="0" topMargin="0" marginheight="0" marginwidth="0"><table width="90%" border="0" align="center" cellPadding="1" cellSpacing="1"><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td width="20%"><span class="quatro"><b>INSCRIÇÃO:</b></span></td><td width="80%">&nbsp;00589</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td><span class="quatro"><b>CATEGORIA:</b></span></td><td>&nbsp;JO</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td><span class="quatro"><b>MODALIDADE:</b></span></td><td>&nbsp;JO08</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td><span class="quatro"><b>TÍTULO:</b></span></td><td>&nbsp;Marcas invisíveis</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td><span class="quatro"><b>AUTORES:</b></span></td><td>&nbsp;Mariana Ribeiro Viana (Universidade Federal de Ouro Preto); Luisa Campos Batista (Universidade Federal de Ouro Preto); Karina Gomes Barbosa (Universidade Federal de Ouro Preto); Ana Carolina Lima Santos (Universidade Federal de Ouro Preto)</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td><span class="quatro"><b>PALAVRAS-CHAVE:</b></span></td><td>&nbsp;Rompimento da Barragem de Fundão, Reportagem, Atingidos, Traumas psicológicos, Saúde mental</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>RESUMO</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">A reportagem especial Marcas invisíveis traz à luz as consequências do trauma na saúde mental das pessoas atingidas, direta ou indiretamente, pelo rompimento da Barragem do Fundão, na região de Mariana/MG, em novembro de 2015. Com cunho denunciativo, a equipe, composta por duas repórteres, uma fotógrafa e uma diagramadora, buscou cobrar da Samarco - responsável pelo rompimento -, das prefeituras de Mariana e de Barra Longa e do Estado de Minas Gerais, posicionamentos e políticas públicas direcionadas ao tratamento da saúde mental dos atingidos. O município de Barra Longa, a 60 km de Mariana, e seus moradores foram escolhidos para representar traumas e fraturas internas daqueles que perderam casas, plantações, animais, memórias e identidades. A sensibilidade é o fio condutor da reportagem, e a urgência em se falar sobre saúde mental e suicídio são os panos de fundo de toda a produção.</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>INTRODUÇÃO</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">A reportagem especial Marcas invisíveis, publicada na edição 23 do jornal Lampião, laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, apresenta uma perspectiva sensível e denunciativa dos traumas, consequências psicológicas e tentativas de suicídio provocados pelo rompimento da Barragem de Fundão, especificamente no município de Barra Longa, Minas Gerais. O ritmo interiorano de Mariana e seus distritos foi interrompido em 5 de novembro de 2015, quando funcionários da Samarco sentiram tremores de terra. Os mesmos abalos foram percebidos 5km à frente, pelos moradores de Bento Rodrigues, e anunciavam a gravidade da situação: a barragem de rejeitos de Fundão havia rompido. Em Barra Longa, o rejeito se incorporou ao Rio do Carmo, fazendo o nível das águas invadir parte do município - ao contrário do que a Samarco havia garantido aos moradores. Casas com quintais à beira do rio foram atingidas. Moradores ficaram ilhados. Animais e plantações foram arrastados. No breu da madrugada de 6 de novembro, a identidade dos barralonguenses era arrancada à força pela lama. O trauma do rompimento da barragem sentido pelos moradores de Barra Longa foi negligenciado pela Samarco e pelo poder público, que se limitaram a estruturar planilhas de custos da reconstrução de casas e comércios. A saúde mental dos barralonguenses era tratada como mais um número. Na época da produção desta reportagem, haviam se passado sete meses do rompimento e a palavra "reconstrução'' possuía sentido profundo para os atingidos, indo muito além da construção de cercas. Em todo bem material carregado pela lama, existia uma identidade. Tudo possuía um significado especial para os moradores de Barra Longa e perdê-los causou marcas profundas, não contabilizáveis numericamente, mas emocionalmente. Foi para trazer luz ao trauma, que estilhaça os indivíduos e os arranca do fluxo normal da vida (SELIGMANN-SILVA, 2002), e denunciar a banalização da saúde mental que produzimos essa reportagem.</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>OBJETIVO</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">O que nos moveu na condução desta reportagem especial foi a necessidade de denunciar a realidade - não retratada pela grande mídia - dos traumas pós-rompimento da Barragem de Fundão. Em alguns veículos da imprensa mineira, a temática da saúde mental em Barra Longa foi retratada com pouco cuidado. Em especial, a notícia de que havia ocorrido tentativas de suicídio no município foi dada por duas rádios de Belo Horizonte e não encontramos informações, além das poucas que foram divulgadas pelos veículos. Boatos diversos, dessa natureza, corriam pelas comunidades e chegavam até nós, à época da reunião de pauta. Meses após o rompimento, pouco havia sido feito em relação à vida dos atingidos. Para além da remediação material imediata - hoje, quase dois anos após o rompimento, pouco avançou no que diz respeito às devidas reparações e aos cuidados com a saúde mental dessas comunidades. Sentíamos que era nosso dever falar sobre a tragédia, para que os atingidos não caíssem no esquecimento, principalmente porque iríamos produzir um jornal-laboratório sem os pesos da rotina produtiva tradicional e com liberdade de expressão. Percebemos que o tema da saúde mental e, objetivamente, os traumas eram temáticas urgentes. Junto com a retratação da real situação dos moradores de Barra Longa, buscamos cobrar dos responsáveis medidas eficazes em prol da saúde mental dos atingidos. É importante lembrar que, desde o rompimento de Fundão, o Lampião vinha continuamente cobrindo o assunto. A edição 21, de dezembro de 2015, foi inteiramente dedicada ao tema. Na edição 22, uma reportagem abordou perdas culturais, como as festas religiosas de Bento Rodrigues e, na 23, a cobertura mudou de abordagem para reportar a situação do assentamento dos atingidos de Bento e os impasses jurídicos da situação. O jornal-laboratório, desde a tragédia, vinha focando seus esforços editoriais e informativos nos sujeitos do acontecimento, e esta reportagem seguiu tal rumo, aprofundando essa proposta editorial.</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>JUSTIFICATIVA</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">A definição da proposta desta reportagem especial aconteceu em reuniões com o corpo editorial: professoras coordenadoras do jornal-laboratório, editor-chefe, editora de texto e nós, repórteres. Decidimos concentrar a angulação no cenário da saúde mental dos atingidos e, consequentemente, apurar se políticas públicas e medidas reparadoras estavam sendo adotadas para o cuidado desta população. A escolha do município de Barra Longa também ocorreu por meio de uma decisão editorial. Duas emissoras de rádio de Belo Horizonte haviam noticiado que tentativas de suicídio teriam acontecido na cidade. Em reportagem do dia 5 de maio de 2016, a rádio CBN informou que foram oito tentativas de autoextermínio e três mortes por este motivo - dois trabalhadores da Samarco e uma moradora de Barra Longa. As informações que obtínhamos indicavam a urgência em se falar sobre saúde mental, traumas e transtornos psicológicos de quem viveu esta tragédia. Posteriormente, o jornal Lampião teve acesso a uma denúncia de um morador de Barra Longa que, por diversas vezes, procurou atendimento psicológico, em tese fornecido pela Samarco, e não foi atendido. Este morador foi nossa primeira fonte no município e, a partir da primeira entrevista, as informações concedidas nos levaram a outros moradores e a tantas outras histórias de vida, nas quais os transtornos mentais eram pontos comuns nos relatos. Logo na primeira visita a Barra Longa, conseguimos entender o porquê de existirem tantos depoimentos semelhantes: a localidade havia se transformado em um canteiro de construção. Os habitantes eram obrigados a conviver com barulho constante de obra, vai e vem de operários, além de respirarem uma poeira alaranjada que se soltava dos montes de lama. Para eles, a barragem se rompia todos os dias ao escutarem máquinas removerem histórias, memórias e identidades destruídas pela passagem da lama. A vida naquele município, antes muito ligada à rotina da terra, ao amanhecer do dia, à lida com as plantações e com os animais, havia se transformado completamente. As mudanças não afetaram somente o cotidiano de Barra Longa, mas também o íntimo dos moradores. Por a lama ter chegado durante a madrugada, muitos já não conseguiam dormir durante a noite. O medo do escuro já não era exclusivo das crianças e a preocupação de outra barragem estourar e de cicatrizes internas serem remexidas impediam que a noite de muitos fosse regular. Alterações no sono e dificuldade para dormir eram uma das queixas mais comuns dos barralonguenses que procuravam atendimento psicológico na policlínica do município. Havia também relatos de ansiedade, irritabilidade, sentimento constante de ameaça, estresse, palpitação, falta de ar, depressão. Sintomas identificados pela única psicóloga do serviço de saúde de Barra Longa. A profissional, sozinha, havia feito mais de 500 atendimentos desde que a barragem rompeu. A policlínica também oferece atendimentos psiquiátricos, entretanto, à época existia apenas um profissional para atender toda a demanda de Barra Longa. Quando questionado se a população estava traumatizada, o psiquiatra afirmou que a queixa maior dos moradores era a perda material. Percebemos naquele momento que além de existir descaso com a saúde mental por meio da Samarco, principal responsável pelo rompimento, havia também o desamparo pelo próprio sistema de saúde. Em contato com os moradores, durante entrevistas, encontros em estabelecimentos comerciais e conversas no meio da rua, ficou claro que a maioria tinha a necessidade de falar. Não somente falar sobre o dia do rompimento da barragem, mas, sim, contar como estavam suas vidas passados meses do rompimento, o que estavam enfrentando, como se sentiam física e mentalmente. Para além da necessidade de falar como se sentiam, os moradores tinham a urgência de serem verdadeiramente ouvidos. O testemunho é apontado como uma das ferramentas para a recuperação dos indivíduos cindidos pelo trauma, conforme aponta Seligmann-Silva (2008).</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>MÉTODOS E TÉCNICAS UTILIZADOS</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">Para compreender o significado das mudanças no cotidiano de Barra Longa, nos debruçamos sobre a obra do sociólogo Georg Simmel, A metrópole e a vida mental (1903). O autor propõe grandes diferenças entre vida urbana e rural. Esta última é envolvida por um ritmo mais lento e em conformidade com o habitual, em que os habitantes estão acostumados com os acontecimentos do cotidiano. Enquanto a vida de um habitante urbano está cercada de um ritmo acelerado com mudanças simultâneas e contínuas, que resulta no estabelecimento de laços sociais mais enfraquecidos. Em contrapartida, no meio rural, o tempo possui continuidade e as relações pessoais são mais profundas e envoltas pela sensibilidade: Com isso se compreende sobretudo o caráter intelectualista da vida anímica do habitante da cidade grande, frente ao habitante da cidade pequena, que é antes baseado no ânimo e nas relações pautadas pelo sentimento. Pois estas lançam raízes nas camadas mais inconscientes da alma e crescem sobretudo na calma proporção de hábitos ininterruptos. Em contraposição a isto, o lugar do entendimento são as camadas mais superiores, conscientes e transparentes de nossa alma; ele é, de nossas forças interiores, a mais capaz de adaptação. Ele não necessita, para acomodar-se com a mudança e oposição dos fenômenos, das comoções e do revólver interior, sem os quais o ânimo mais conservador não saberia se conformar ao ritmo uniforme dos fenômenos (SIMMEL, 1903, p.12). Nas entrevistas com os atingidos e relacionamento com as fontes, empatia era a palavra de ordem. O nosso trabalho também se revelou como uma produção de cunho investigativo, na qual deveríamos ter sensibilidade nas entrevistas com os personagens e, por outro lado, ter uma postura assertiva quando precisávamos de informações e pronunciamentos de fontes oficiais, como a Prefeitura de Barra Longa e a assessoria de comunicação da Samarco. Cleofe Sequeira, em Jornalismo investigativo - fato por trás da notícia, ilustra a dualidade da relação entre repórter e fonte e explicita a importância da empatia: O repórter acredita que deve haver empatia entre repórter e fonte, o que não quer dizer conivência; tem de haver confiança, o que não quer dizer falta de respeito; tem de haver clareza de objetivos, o que não significa rumos pré-determinados. O que Percival pode detectar em seus quase quarenta anos de profissão é que o convívio com uma fonte de informação em uma matéria difícil nem sempre é agradável, até mesmo pelas tensões e revelações, mas o autor nunca poderá se colocar num plano superior à fonte (SEQUEIRA, 2005, p. 80). O cuidado que assumimos ao abordar o trauma dos nossos personagens exigia sensibilidade e foi reforçado após um mergulho nas formas de tratar o suicídio no discurso jornalístico. Devido à profundidade dos traumas, nos orientamos pela cartilha da ONU Prevenção do Suicídio: Um Manual Para Profissionais da Mídia (2000). As instruções foram fundamentais para desenvolvermos a nossa abordagem sobre o tema, além de aprendermos quais expressões utilizar e aquelas que precisam ser evitadas. O mais importante ao seguir o estudo da ONU foi perceber que o trabalho jornalístico pode ter um papel positivo na prevenção dos casos e que este tema é um problema de saúde pública. A partir deste manual e das orientações das professoras, construímos conceitualmente - e materializamos nas duas páginas centrais da edição - os três elementos da reportagem: texto, foto e diagramação. Pensando sempre em alinhar essas frentes em um material sensível, coerente e ao mesmo tempo contundente. Durante a apuração, recebemos a informação através do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB - Barra Longa) que uma de nossas entrevistadas tentou suicídio e que, possivelmente, ela não confirmaria isso a uma equipe de reportagem. Seguimos para a entrevista com a vítima e elevamos o cuidado na abordagem principalmente, a condução da conversa. Encontramos uma senhora visivelmente abalada, que continha as palavras no momento de relatar uma memória e, por muitas vezes, se emocionava ao lembrar do pânico ao ficar ilhada dentro de casa. Fomos bem recebidas e não encontramos nenhum impedimento para a realização da entrevista. Ao mesmo tempo, notamos que havia certa preocupação com o tipo de informação que ela se sentia segura em nos revelar. O marido também se mostrava preocupado, vindo por várias vezes ao ambiente da conversa para observar se a esposa estava bem. Dado o estado emocional da entrevistada, não perguntamos diretamente se ela havia tentado suicídio. A história que havíamos registrado já nos bastava. Essa entrevista foi essencial para entendermos que, para as pessoas mais velhas, o rompimento da barragem possuía sentido diferente. Aquelas pessoas haviam crescido, criado os filhos, trabalhado, sempre em contato com a terra, imersos na rotina de uma pequena cidade. Mais perto do fim da vida, para eles o que havia acontecido apresentava um sentido maior e, de certo modo, mais doído. As conversas com essas pessoas eram sempre carregadas de memórias de como era viver em Barra Longa antes da chegada das máquinas e dos operários, antes do estrago da lama, antes dos traumas do rompimento, antes mesmo de haver seis mil habitantes no município. Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade: lembrança de velhos (1994), salienta que o ato de relembrar faz parte da construção de fragmentos de identidades que nos constituem. Por vezes, a memória pode ser alterada com a passagem do tempo ou sobrevivência a um evento traumático: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelo materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI, 1994, p.55) Assim como os idosos, as crianças foram muito afetadas pelos traumas do rompimento. Percebemos isso ao entrevistar João Pedro, que com apenas cinco anos deixou Bento Rodrigues às pressas naquele 5 de novembro. Antes, João nem sequer sabia o que era uma barragem. Bento era tudo o que o menino conhecia. O distrito representava a proximidade com os primos, as brincadeiras no quintal e a calmaria das noites, mas tudo se rompeu com a barragem. Entrevistar João, nosso único representante de Bento Rodrigues, foi um dos desafios da produção desta reportagem. Decidimos editorialmente que precisávamos, ainda que em uma retranca, relatar um pouco de Bento Rodrigues. Mesmo já abordado pelo Lampião e pela mídia não tradicional anteriormente, sentimos que tínhamos o dever de inserir os atingidos do distrito em nossa reportagem. A entrevista com uma criança, principalmente após uma situação traumática, requer muito tato e respeito. Respeito pelo seu espaço, sua forma de organizar e contar o mundo, dada sua tenra idade. Acompanhadas por sua mãe, Paula, conversamos com João sobre a nova escola, os brinquedos, os amigos e, por fim, sobre os medos. Paula nos ajudou neste assunto e revelou que, após o rompimento, o filho não conseguia dormir sozinho. Qualquer barulho forte significava, para João, que outra barragem havia estourado. Medos normalmente infantis, como monstros embaixo da cama, se transformaram em pavor da lama e deram lugar a queixas de gente grande, como a insônia.</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr> <td colspan="2"><span class="quatro"><b>DESCRIÇÃO DO PRODUTO OU PROCESSO</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2" align="justify">Para apurarmos os casos de suicídio noticiados, ligamos para a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, mas recebemos a informação que o órgão não possuía esses dados. Fizemos nossa primeira visita a Barra Longa em dúvida sobre a veracidade das informações que chegavam até nós. Somente no município, percebemos a importância de escutar as angústias e incertezas dos atingidos. Fomos tecendo uma rede de fontes. Como é tradição no interior, os barralonguenses se conhecem por nome e sobrenome. Portanto, uma fonte nos levava a outra e em pouco tempo éramos de confiança. Acreditamos que sem essa segurança nosso processo de apuração não atenderia aos prazos de produção do Lampião. É importante considerar que a produção do jornal é processual: após a reunião de pauta e o fechamento do espelho, a cada semana as equipes têm etapas produtivas a entregarem para acompanhamento de professores e editores, culminando na semana de fechamento do produto. Assim, em três semanas de apuração tivemos contato com vários atingidos, que sentiram a força da lama de diferentes formas e abriram suas portas - e suas dores - para nós. Elaine Etrusco foi a segunda fonte a nos receber em sua casa. Nos mostrou o quintal parcialmente tomado e as plantações sufocadas pela lama seca. Elaine nos contou das incertezas, da perda de identidade, e dos pés de feijão que pareciam insignificantes para os funcionários da mineradora. É dela a citação que ilustra a capa do Lampião 23:  Eles falam em obras, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo dos meus pés de feijão . O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), representado em Barra Longa pelo jornalista e ativista Thiago Alves, foi a linha para nossa costura. O MAB nos direcionou a atingidos como Íris Lana e Odete Cassiano, além de outras fontes. Bordadeira, Íris nos mostrou as peças que havia voltado a produzir. Após o rompimento, a Doença de Parkinson, que Íris convive há anos, se agravou e ela não andava ou falava. A moradora ficou ilhada e nos contou que só conseguiu deixar sua casa no dia 7 de novembro. Com a enxurrada de lama se foram os objetos de família, os bordados e as fotos de um filho já falecido.  Foi muito triste sair da minha casa e deixar tudo pra trás, mas a perda material não é tanta. Tinha muitas fotos do meu filho que morreu, do meu pai, e objetos de família (CAMPOS E VIANA, 2016, p.7). Nas entrevistas mantivemos uma postura de respeito à dor de nossas fontes. Buscávamos nutrir uma relação de empatia. Conversamos com fontes com diferentes níveis de Síndrome do Stress Pós-Traumático, e nos mantivemos atentas à formulação das perguntas. Nunca questionávamos os sentimentos, ou dizíamos que  entendíamos aquela dor - nós não entendíamos. Tentávamos criar um ambiente confortável e uma relação de confiança, para que durante a entrevista os temas fossem abordados naturalmente. Até o momento da conversa com Odete, havíamos entrevistado onze fontes em Barra Longa, mas ainda não havíamos nos deparado com tentativas de suicídio. Durante nossa instrução pré-campo, trabalhamos abordagens para quando essas situações aparecessem nas entrevistas. Com Odete estávamos preparadas para ouvir sobre as marcas da depressão, mas não imaginávamos que, espontaneamente, ela nos contaria sobre uma tentativa de dar fim à própria vida. Em um misto de confiança e vontade de ser ouvida, de trazer à tona as angústias que a acompanhavam desde o rompimento, ela se abriu:  Odete enfrentou momentos difíceis, tentando cuidar de si e dos pais em meio à destruição. Parte da identidade da moradora foi perdida quando a lama desmanchou toda a plantação. Foram meses turbulentos que culminaram na tentativa de dar fim à própria vida. (CAMPOS E VIANA, 2016, p. 6) Durante a apuração, fazíamos reuniões periódicas com o corpo editorial para conversar sobre os rumos da reportagem. Essas reuniões, previstas nos métodos de produção do Lampião, foram intensificadas dada a dimensão da pauta, o que nos ajudou a direcionar ainda na própria apuração, a angulação da reportagem. Esse processo de acompanhamento contribuiu para refletirmos sobre o fazer jornalístico e a importância de nosso papel em meio a uma imprensa tradicional que não se comprometeu em dar voz aos atingidos. O diálogo com a Samarco foi um dos desafios da produção. Inicialmente tentamos contato via escritório em Barra Longa. Após várias tentativas, fomos respondidas - apenas via e-mail. Buscamos cobrar medidas em relação à saúde mental dos atingidos. Questionamos as informações que recebemos de nossas fontes de Barra Longa (atingidos, psicóloga e psiquiatra da própria empresa, MAB) para darmos o direito de resposta à Samarco, mantendo a pluralidade de vozes que o bom jornalismo exige. Além da Samarco, o governo de Minas Gerais e as prefeituras de Mariana e Barra Longa foram contactados em busca de respostas e como cobrança pela banalização da saúde mental dos atingidos. O texto que compõe a matéria anda de mãos dadas com as fotografias e a diagramação, construídas ao longo do contato com Barra Longa. Todos os três elementos fazem nossa reportagem tomar corpo e voz, e foram pensados para terem a sensibilidade como mote principal, em respeito aos traumas de tanta gente. Não deixamos de lado o tom denunciativo tão necessário em um trabalho que aborda direitos humanos, saúde mental, suicídio e responsáveis pelo rompimento da barragem. O conceito das fotografias vai além da função de documentar. Nesta reportagem, as imagens se posicionam como uma ponte entre a abordagem cuidadosa e uma escrita sensível. Os registros fotográficos se comportam também como um aspecto expressivo que se dispõe sutilmente na tríade entre atingidos, repórteres e leitores. A imagens foram pensadas a partir do conceito de fragmentação de identidades, estilhaçadas desde a chegada da lama. A fotógrafa nos acompanhou nas entrevistas, adotando uma postura acordada editorialmente: evitar registrar as fontes em momentos frágeis - uma política pouco praticada no jornalismo tradicional, que trata a sensibilidade das fontes de maneira fria e mecânica. Esta decisão foi apoiada na proposta de produzir um jornalismo crítico, alternativo e humanizado. Houve o cuidado de preservar as personagens de uma exposição excessiva e, pelo tema delicado que se evocava, julgamos importante não dar ver por completo seus rostos e identidades. A opção mais adotada foi o plano detalhe, em que se apresentavam fragmentos do rosto ou do corpo (os olhos, a boca, os braços e as mãos). A ideia de fragmento se formava assim nas fotografias e se realizou na diagramação da página. Os fragmentos apresentavam um valor conotativo, uma vez que pareciam representar a condição das pessoas naquele momento. A diagramação buscou trazer leveza, ao criar uma página de visual limpo, com uso de contra-grafismos (brancos). O posicionamento das fotos, quase complementar, foi pensado para reforçar a ideia de fragmentação. A forma como o olhar de uma personagem complementa a expressão nervosa de outra demonstra como essas identidades rompidas, se integram em suas dores, igualmente entrecortadas pela passagem da lama. A escolha da cor e da fonte foram orientadas por uma identidade visual que complementasse o texto e as imagens. O azul, que de acordo com a Psicodinâmica das Cores (FARINA, PEREZ, e BASTOS, 2006) remete à serenidade e à confidência, corrobora a sensação de leveza e sensibilidade passada pela diagramação. A fonte manuscrita humaniza a página e nos relembra que aquele texto busca humanizar pessoas que, até então, eram tratadas pela mídia, pela mineradora e pelo poder público como números. O texto foi escrito para que expressasse o tom que planejávamos. Escolhemos as palavras com respeito pela sensibilidade do tema e pelos personagens ali retratados. A linguagem híbrida, entre lirismo e denúncia, buscou descrever com respeito histórias e traumas das nossas personagens, e ser firme ao cobrar dos responsáveis medidas para a saúde mental daquelas pessoas. </td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>CONSIDERAÇÕES</b></span></td></tr><tr width="90%"> <td colspan="2" align="justify">Produzir esta reportagem especial era nosso dever enquanto estudantes de jornalismo e moradoras de Mariana. Desde novembro de 2015, desempenhamos papéis diferentes frente à tragédia: antes como observadoras, nos dias que seguiram ao dia cinco, ainda tentando compreender o rompimento. Depois, como narradoras-observadoras que utilizam o olhar jornalístico e os instrumentos da profissão para contar a história das Marcas invisíveis. Ainda que quiséssemos registrar as histórias e denunciar o descaso com a saúde mental, sentíamos que qualquer escrito ou fotografias produzidos eram peças insignificantes de um quebra-cabeça de graves consequências que, por vezes, se mostravam sem solução. Os danos aos atingidos parecem aumentar na progressão que o tempo passa e que culpados não-responsabilizados continuam a banalizar a vida dessas pessoas. Quase dois anos após o rompimento, os atingidos de Bento Rodrigues, Barra Longa e Paracatu de Baixo ainda esperam que suas vidas sejam minimamente reinseridas no modo habitual em que viviam. Produzir esta reportagem nos mudou. Voltávamos para casa com a mente e o corpo tomados por histórias que precisavam de um amparo, uma solução. Todos os agradecimentos que ouvíamos dos personagens desta reportagem nos fizeram sentir, lá no fundo, que o trabalho que estávamos desenvolvendo significava, sim, muito para eles. E que, por isso, significava para nós. Ter suas histórias, dores e angústias verdadeiramente ouvidas por nós, era ter a atenção e o carinho que eles esperavam daqueles que são responsáveis pelo rompimento de identidades e memórias. Era voltar pra casa carregando o peso de uma tragédia e o respiro de poder mudar pequenos mundos através do fazer jornalístico.</td></tr><tr><td colspan="2">&nbsp;</td></tr><tr><td colspan="2"><span class="quatro"><b>REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁICAS</b></span></td></tr><tr width="90%"><td colspan="2">BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 484 p.<br><br>CAMPOS, Luísa. VIANA, Mariana. Marcas Invisíveis. Jornal Lampião, Mariana, Junho 2016. Especial, p. 6  7. <br><br>FARINA, M; PEREZ, C; BASTOS, D. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. 5ª ed. São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 2006. 158 p.<br><br>ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Departamento de Saúde Mental Transtornos Mentais e Comportamentais. Prevenção do Suicídio: um manual para profissionais da mídia. Genebra. 2000.<br><br>SEQUEIRA, Cleofe M. Jornalismo Investigativo - o fato por trás da notícia. São Paulo: Summus Editoral, 2005. 193 p.<br><br>SELIGMANN-SILVA, M. Narrar o trauma  a questão dos testemunhos de catástrofres históricas. In: Psicologia Clínica, Rio de Janeiro. Vol. 20, n. 1, p.65  82, 2008.<br><br>SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 136 p.<br><br> </td></tr></table></body></html>