INSCRIÇÃO: 01131
 
CATEGORIA: PT
 
MODALIDADE: PT08
 
TÍTULO: Ela, presidenta.
 
AUTORES: Janaína Oliveira Vezo (Universidade Federal de Ouro Preto); Rafael Drumond (Universidade Federal de Ouro Preto)
 
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo em Quadrinho, Dilma Rousseff, Política, Questões de Gênero,
 
RESUMO
O produto busca unir o gênero jornalístico às histórias em quadrinho (HQ's) para reportar o processo de impeachment da primeira presidenta eleita no Brasil, Dilma Rousseff. O procedimento adotado para o Jornalismo em Quadrinho tem como objetivo explorar a linguagem verbo-visual das HQ's para intensificar o papel crítico e político do Jornalismo. Já a escolha do tema, busca entender de forma mais profunda a estreita relação entre ser mulher e "o ser mulher" numa sociedade atravessada pela naturalização da violência e da desigualdade de gênero. Dilma Rousseff é a personagem central da narrativa criada: um olhar sobre o Golpe de 2016 a partir de sua luta como autoridade máxima de um país marcado por uma sociedade patriarcal.
 
INTRODUÇÃO
Ela, Presidenta (2017), publicado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresenta a narrativa de um fragmento da política brasileira através da perspectiva de gênero, debatendo o papel jornalístico nas Histórias em Quadrinhos (HQs). A aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados da primeira mulher presidenta do Brasil, no dia 17 de abril de 2016 revelou, além de estruturas corruptas da política brasileira, a falta de representatividade feminina no âmbito político-social. No dia 12 de maio, o Senado aceitou o pedido de abertura do processo de impeachment da presidenta. Nesta casa, foram 55 votos a favor e 22 contra a destituição. Um ano e quatro meses depois de assumir o segundo mandato, Dilma Vana Rousseff deixou a Presidência, no dia 31 de agosto de 2016. Ao se tornar presidenta, Dilma desafiou a lógica machista e misógina de nossa sociedade de que mulheres possuem papéis secundários em relação aos homens, sobretudo na política. O que nos leva a questionar: qual seria o crime da presidenta? As pedaladas fiscais? Ou o fato de ser mulher e, com isso, ser mais fácil de "estancar a sangria"? Estas inquietações, colocam Dilma no centro de outros questionamentos da produção, por exemplo, o tratamento que a mídia confere às mulheres. Para nós, jornalistas, essa questão deveria ser peça-chave para diversas narrativas. E, no caso das histórias em quadrinhos – linguagem na qual o produto é construído –, como criar uma narrativa empoderadora, que, de fato, represente o "ser mulher" por outras perspectivas que não a do desejo heteronormativo? Por fim, o projeto busca conceituar o gênero a partir de duas frentes: as histórias em quadrinhos como forma de expandir o que se entende como gênero jornalístico; e, ainda, de que modo este tema poderá trabalhar as problematizações em torno das questões de gênero e o seu cerceamento na sociedade, em todos os âmbitos, seja na política, na mídia ou, até mesmo, nas HQ's.
 
OBJETIVO
Compreendi que era impossível falar sobre o impeachment de Dilma Rousseff sem falar dos acusados da Lava Jato e das empreiteiras, das contas na Suíça[1]: "Estancar a sangria", "um grande acordo, com STF, com tudo". O golpe de Estado arquitetado com maestria pelos maiores nomes da corrupção brasileira. Optei por desenhar o Golpe a partir da sua orquestração, um bastidor político ao qual a sociedade teve acesso por meio de denúncias e vazamentos que, aos poucos, foram elucidando o projeto de tomada de poder da oposição. Ao mesmo tempo, busquei ilustrar que, não fosse a misoginia e o machismo, o papel da imprensa, e um país de muitas desigualdades, essa história poderia ser outra. Os acontecimentos políticos relatados no produto expressam as dificuldades enfrentadas por Dilma na Presidência, sobretudo enquanto mulher, que esbarram nos limites da dignidade humana. Esses episódios estão fortemente marcados pela institucionalização da violência de gênero no Brasil, contexto no qual as mulheres encontram-se marcadas por determinações sociais que limitam seus espaços para atuação política e social. Em relação às HQs, a atmosfera social em que homens e mulheres estão inseridos é bastante conflituosa, o que influencia na produção dos quadrinhos. Nessas narrativas, o machismo revela-se desde traços dos desenhos – em geral, as heroínas são hipersexualizadas – até o preconceito com a participação feminina na criação de produtos da área. O trabalho busca também questionar todos os tipos de representação da mulher, nas diversas camadas sociais, culturais e artísticas. [1] Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados à época do impeachment, era titular de três contas na Suíça, e a esposa dele, Cláudia Cruz, titular de outra. Duas contas de Cunha foram encerradas antes que as autoridades suíças conseguissem bloquear o valor. As outras duas contas tinham saldo de 2,39 milhões de francos suíços. O dinheiro viria de pagamento de propina, referente a contratos da Petrobrás.
 
JUSTIFICATIVA
As Histórias em Quadrinhos no gênero jornalístico criam um hibridismo entre diferentes campos discursivos. Enquanto de um lado certos elementos do jornalismo são apropriados, como o trabalho de apuração, informações significativas para o leitor, além de comunicar aquilo que possui relevância em um contexto social; por outro, utiliza-se elementos do entretenimento, ligados à indústria cultural que faz das histórias em quadrinhos um produto globalizado, mesmo atrelado à certas características de suas culturas de origem. Com esse potencial, as HQ's ganharam espaço no meio jornalístico. O quadrinista brasileiro Robson Vilalba, em "Notas de um Tempo Silenciado", utiliza da linguagem das HQ's para narrar o golpe de 64. Para escrever sobre esse capítulo sombrio da história brasileira, Vilalba transpassa a barreira ficcional ao construir uma reportagem fundamentada por uma apuração como forma de revisitar a história, assumindo sua responsabilidade enquanto jornalista. A narrativa criada dirige-se não apenas à sociedade do presente, mas, como indica o título, ao passado (que foi silenciado) e ao futuro. Um exemplo a ser seguido do jornalismo literário (ou as grandes reportagens, em qualquer formato) é o volume de informação, dados coletados em campo, estatísticas, a experiência do jornalista, que não são postos em detrimento do recurso estilístico e estético da linguagem. Os desenhos não podem servir de muleta, se a proposta é jornalística, biográfica ou analítica. Os quadrinhos têm que trazer o máximo de informação para o leitor e não só uma nova forma de contar o que elas já sabem. (VILALBA, 2015, p. 102). Contudo, não é apenas o gênero jornalístico que este trabalho coloca em discussão. Há, no centro da narrativa criada, uma reflexão sobre outra questão de gênero, ligada ao feminismo e ao lugar da mulher na nossa sociedade. Ediliane Boff, em sua tese de doutorado De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos (2014), aborda a forma que o feminino aparece em diversas obras, tanto ao redor do mundo, como no Brasil. Segundo a pesquisadora, (...) é possível notar, por exemplo, uma maior preocupação em discutir as libertações e repressões sexuais das mulheres nas produções femininas analisadas na tese. Também é possível constatar maior atuação política na questão do gênero, por parte dessas mulheres. Quanto à temática como amor, relacionamento, romantismo, consideradas tradicionalmente como assuntos femininos, é possível encontrá-las igualmente na produção de ambos os gêneros. (BOFF, 2014, p44). Apesar da representação dos maiores estúdios que ainda reforçam estereótipos de gênero, produções independentes criadas por mulheres têm revolucionado a forma de pensar os quadrinhos. No contexto brasileiro atual, a jornalista Carolina Ito, integra a nova geração de quadrinistas que atuam pela igualdade de gêneros e pela garantia dos direitos humanos. Carolina lançou uma HQ sobre a XX Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (2016), na qual traça reflexões sobre as políticas de gênero no Brasil. Ainda no campo da diversidade, destaca-se o trabalho de uma das maiores cartunistas do Brasil: Laerte Coutinho. Em uma tirinha publicada em 2004, na qual seu personagem Hugo aparece como travesti, Laerte despertou a atenção para sua identidade feminina e colocou o assunto na pauta dos quadrinhos. A partir do trabalho e de sua projeção pública, a quadrinista expôs, publicamente, seus conflitos de sexualidade. A diversidade de gênero e sexualidade está gradualmente sendo introduzida como pautas dos enredos, principalmente com a ascensão cada vez maior de mulheres na área de criação. Surgem novas protagonistas femininas – além de protagonistas gays, negros, asiáticos, latinos e muçulmanos – e, embora ainda exista uma representação sexualizada das mulheres, personagens e temas feministas estão se tornando mais recorrentes e a tendência é apenas aumentar esse pluralismo para próximas gerações.
 
MÉTODOS E TÉCNICAS UTILIZADOS
No trabalho proposto, adotei dois eixos para criar a estrutura narrativa do produto: o eixo temporal e o eixo temático. No primeiro, tratei os temas relacionados ao impeachment da presidenta Dilma, bem como alguns acontecimentos seguintes ao processo (cronologia política); já no eixo temático, assuntos paralelos aos desdobramentos da política foram trabalhados, especificamente, acontecimentos históricos e atuais que refletem a questão da violência de gênero, do machismo e da misoginia que marcam a sociedade brasileira. A intenção é que esta perspectiva oriente o leitor em relação ao tema, a saber, o olhar feminista que conduz um relato crítico sobre o impeachment da presidenta. Para tanto, foi necessário criar uma espécie de clipping com informações referentes ao impeachment e ao contexto social brasileiro no período. A partir dessa filtragem, escolhi alguns elementos para composição da narrativa. Sobre o impeachment, busquei trazer aspectos que relacionassem o ponto de vista político e jurídico do processo – que seria como se deu, na prática, o afastamento da presidenta – a uma concepção histórico-social – que engloba as questões que inserem a política de hoje na história do país, sendo as questões de gênero o ponto de convergência entre tais perspectivas. Em relação a cada eixo, os episódios escolhidos para serem reportados foram: Eixo Temporal (Processo político e jurídico do impeachment) Diálogo Jucá: estancar a sangria Assinatura dos Juristas. Abertura oficial do processo de impeachment; Eduardo Cunha acata o pedido. Dilma o acusa de retaliação; Os Três Poderes: Divisão do processo e votação na Câmara e Senado; Câmara dos Deputados: Fala dos Deputados (Jandira, Professora Marcivânia, Glauber Braga, Bolsonaro); Senado: Fala dos Senadores (Collor e Aécio Neves). Depoimento de Janaína Paschoal. Conversa entre Romero Jucá, Renan Calheiros e Eduardo Cunha; Governo Temer: Todos os Homens do Presidente. Fim do Ministério da Cultura. Daniela Mercury e Marília Gabriela recusam convite de Temer; Erros da esquerda e governo Dilma: Lei antiterrorismo. Prisão de Rafael Braga. Kátia Abreu como ministra da agricultura. Assentamento de terras. Demarcação de terras indígenas. Violência LGBT. Eixo Temático (Questões de Gênero) Manifestações Fora Collor/Fora Temer/Fora Dilma; Manifestações a favor do Ministério da Cultura; Bela, Recatada, do Lar; Caso de estupro no Rio de Janeiro; A misoginia midiática; Flores para Dilma; Dilma e a humanização: Infância, juventude e vida. Para construção do roteiro, isto é, da narrativa que alinharia os dois eixos e os sintetizariam na verbo-visualidade dos quadrinhos, enfrentei alguns desafios. Entre eles, delimitar e reunir os fatos apurados de forma cronológica (conforme já colocado, a seleção da clipagem), e, no caso do eixo temático, estabelecer a conexão com o eixo temporal. Assim, após conseguir reunir em grupos todas as informações, precisei subdividi-las em capítulos, para que a narrativa transcorresse com coerência. O modo que preferi dividir as partes do projeto foi utilizar também ilustrações. Assim, o produto foi separado em cinco capítulos: Capítulo I: Um plano, um pacto: os acontecimentos explorados neste capítulo se iniciam nos áudios das conversas gravadas entre o senador Romero Jucá e o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, chegando ao processo jurídico do impeachment da presidenta. Essa primeira parte encerra-se no afastamento definitivo de Dilma, pelo Senado. Capítulo II: Todos os homens do presidente: neste capítulo, os assuntos políticos do eixo temporal começam a se unir cada vez mais com o temático. Os temas que englobam essa parte dos acontecimentos começam a partir da posse de Temer e passam pelas manifestações populares, pelo fim do Ministério da Cultura, além de abordar a falta de representatividade feminina. Capítulo III: Pra não dizer que não falei das flores: o título que havia pensado, a princípio, para o projeto final, acabou tornando-se um capítulo. Nessa parte, construo uma narrativa explicitando o quanto a misoginia sofrida por Dilma gerou empatia nas mulheres brasileiras. Desenvolvo nesse ponto as manifestações pró-impeachment e suas facetas machistas, além da representação midiática, entrega das flores para a presidenta e a ironia "bela, recatada e do lar". Capítulo IV: No compasso da desilusão: em um dos pontos mais difíceis da narrativa, nesse fragmento levanto os questionamentos acerca do governo Dilma, quais foram seus erros e, sobretudo, o que eles influenciaram não para o impeachment, mas para aumentar o descrédito do governo com os movimentos sociais brasileiros. Capítulo V: O tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração: Por último, um capítulo mais autoral. Começo pela infância de Dilma e desenvolvo a narrativa em sua vida pessoal, até chegar à posse da presidência e, também sua destituição do cargo. O capítulo encerra-se com o discurso da própria presidenta, logo após sofrer o golpe de Estado. Vale ressaltar ainda que as ilustrações só foram viáveis em função das apurações. A quantidade de fatos, quais eram os graus de importância destes para a narrativa, de que forma explorar e limitar os assuntos. Como exemplo, poderia citar as manifestações contra o governo interino de Michel Temer. Ao entender que precisava cercear as questões de gênero, apurei quais eram os protestos das frentes feministas e, desta forma, construí a narrativa a partir do protagonismo das mulheres. Para não correr o risco de uma representação muito ficcional, uma vez que trata-se também de um produto jornalístico, procurei manter uma representação baseada em fotografias, tanto no preâmbulo, quanto no decorrer de todo o processo. Esta é a marca estética que se repete, salvo algumas exceções como a representação do jogo de cartas e o último capítulo – onde Dilma aparece humanizada – que se trata de trabalhos livres e autorais, além de determinadas representações estéticas específicas do meu trabalho como os traços, diferenciação entre os gêneros – o apagamento do rosto masculino, em detrimento do protagonismo feminino – entre outras particularidades. Mesmo as representações mais caricatas foram baseadas em fotografias, muito para auxiliar na apuração dos fatos, que eram diversos. Dessa forma, mantive algumas ideias originais, para deixar o trabalho de fato autoral e mesclei com informações que já estavam dispostas. A carta de Dilma Rousseff, por exemplo, simboliza a representatividade feminina em um papel constantemente renegado às mulheres: a autoridade suprema, neste caso o rei de ouro, que para o jogo possuí não apenas título de poder, mas também de soberania. Sobre as técnicas estéticas empregadas, acredito que posso apontar o aprendizado como a maior delas. A arte realista trabalhada, bem como todos os recursos de ordem manual, visual e narrativo, fez parte de um processo de aperfeiçoamento de técnicas, realizado no decorrer do processo. Abaixo, os materiais utilizados: 1. Trabalhos manuais Lápis 4B/6B Nanquim 0.05/0.3/0.5/0.8 Papel Vegetal A4/40g/m² 2. Trabalhos Gráficos Programas: Corel Draw X6/Indesign/Illustrator Vetorização/Coloração Impressão: Papel Sulfite A4/90g/m² Sobre as ilustrações - exceto a capa e contracapa do produto - todas foram feitas manualmente, sendo toda a arte realizada primeiro à grafite, depois Nanquim, com traços originais e únicos. Já nos trabalhos gráficos, contei com o auxílio de dois colegas do próprio curso de Jornalismo para o processo de coloração e finalização do produto. Todas essas reflexões, dentre outras, propuseram mesclar a história política com a minha perspectiva pessoal e criativa, além de encarar o Jornalismo em Quadrinho como uma vivência tão jornalística quanto qualquer outra, necessitando assim de trabalhos profundos, apuração, bem como o comprometimento total com a ética.
 
DESCRIÇÃO DO PRODUTO OU PROCESSO
Antes de explorar o tema em si do trabalho, decidi produzir um preâmbulo: nele, encontra-se uma linha do tempo costurada por mulheres que lutaram pela igualdade de direitos e pela emancipação feminina. De todas as apurações, esta foi a mais difícil: as informações sobre a vida e o trabalho de mulheres que não são reconhecidas como protagonistas da História são escassas e resumidas, o que tornou ainda mais evidente a importância de visibilizar a questão. No caso das mulheres negras, em específico, o desafio foi ainda maior. Duplamente afetadas pelo machismo e racismo, o apagamento do feminismo negro é sintomático do histórico de escravidão que marca a história brasileira. Notei que o recorte racial nas questões de gênero torna-se não apenas legítimo, como fundamental para se entender a pluralidade dos "feminismos" e de que forma eles se fragmentam entre mulheres. Há também um fato curioso que percebi enquanto revia vídeos da noite do impeachment, na Câmara dos Deputados. As mulheres que votaram contra o processo, como as deputadas Jandira Feghali (PCdoB) e a Professora Marcivânia (PCdoB) foram vaiadas, ridicularizadas, nas justificativas de seus votos. Era possível ver os homens aos risos, interrompendo a fala das deputadas. Cheguei à conclusão que aquele comportamento deslegitimava a voz da mulher naquele espaço, retirava o valor de suas opiniões. Contudo, o mesmo não acontecia com homens. O deputado Glauber Braga (PSOL), por exemplo, antes de votar "não", dedicou seu voto à Carlos Marighella[1] e Olga Benário[2]. Era possível sentir os olhares de revolta, mas não houve nenhum esforço para ridicularizá-lo, nem tampouco interrompê-lo. Por essas e outras razões, as mulheres são protagonistas da HQ "Ela, presidenta". Represento-as com a centralidade que a vida diária lhes tira, inclusive, personagens polêmicos como Kátia Abreu (PSDB) e a jurista Janaína Paschoal. Socialmente falando, seja na vida, ou nas esferas de poder, existe um papel feminino já determinado pelo patriarcado. Desta forma, mulheres com visões conservadoras são bem-vindas na política, desde que saibam o lugar que devem ocupar – ainda que conquistando certo espaço, sua função é reforçar a estrutura que lhes precede, além de condenar visões "liberais" em prol da moral, da família e dos bons costumes. A primeira dama, a "bela, recatada e do lar"[3], tem um sentido profundo na sociedade patriarcal. Contudo, deve-se questionar a postura da pessoa política, não seu gênero. Desta forma, há sim críticas à estas mulheres no projeto, porém uma crítica de cunho político, não misógino. Ainda sobre a representação busquei, como forma de protesto, inverter a incontestável e irrefutável superioridade dos homens sobre mulheres: um gesto de denúncia das estruturas existentes e uma estratégia de reflexão, ainda que meu pleito seja pela igualdade entre os gêneros. Na HQ, apaguei todos os rostos masculinos que pude ou os fiz em escalas menores, procurando torná-los insignificantes. Usei seus piores discursos, memorizei seus piores traços para reproduzi-los nas ilustrações. Uma das motivações dessa postura foi o discurso de Jair Bolsonaro (PSC) na noite do impeachment, na Câmara dos Deputados. Pensei em Dilma Rousseff, em sua dor ao ver e ouvir um torturador ser aclamado em plenário[4], durante a votação de um Golpe de Estado, para a entrada de um governo ilegítimo. Tudo tão simbólico, tão forte. No artigo "Mídia, Misoginia e Golpe" (2016, p150), a deputada Jandira Feghali é uma das entrevistadas que comenta sobre o processo de impeachment e sobre as desigualdades de gênero: "Este é um golpe machista, é claro. Em diversos momentos a própria imprensa usou de recursos difamatórios e misóginos para desqualificar e desconstruir a presidenta Dilma. Um caso clássico foi a capa da Revista 'Isto É', em que era chamada de louca" (FEGHALI, 2016, p150). A deputada faz alusão à capa da revista "IstoÉ". Além de polêmica, a capa é a prova do sexismo midiático, que utiliza do machismo para atacar a presença de mulheres na política. Em nenhum momento da história brasileira, algo parecido foi reproduzido para atacar uma figura do sexo masculino: ao contrário, quando homens são "explosivos", a mídia os destaca como homens fortes, que estão tomando o controle. Foi necessário ainda compreender que não podia tematizar uma luta entre bem e mal, com vilões e heróis, como nas HQs. Precisei ter cautela para não entrar em uma dicotomia, na qual Dilma seria concebida como uma heroína sem falha, lutando contra todos os males da sociedade brasileira. Erros graves ocorreram no governo Dilma e foi necessário admiti-los. Exemplo disso foi o convite à senadora Kátia Abreu (PMDB) para ocupar o primeiro escalão do seu governo, logo após a reeleição e, ironicamente, a tornou ministra da Agricultura. A parlamentar consolidou sua figura de líder da bancada ruralista, e ainda fez parte de entidades do setor do agronegócio. Além disso, Kátia é dona de uma fazenda de soja e gado, no Tocantins. Os movimentos populares ficaram indignados com essas e outras decisões, com níveis de dúvidas que iam desde "o que está acontecendo?" até "será que o PT ainda é um partido de esquerda?". Há ainda outro fator muito importante que precisou ser explorado na narrativa: a humanização de Dilma. Já sabemos até aqui do processo jurídico-político do impeachment, sabemos da misoginia envolvida e também dos erros cometidos pelo governo da presidenta. Mas quem é Dilma Vana Rousseff? Por trás de uma imagem, existe uma pessoa, com diversas nuances e particularidades. Assim decidi encerrar a narrativa: no apontamento de que Dilma, minha personagem feminista, é também uma pessoa, humana, fragmentada. "Muitas vezes disseram para mim: mas você é muito sensível. Esta afirmação é estarrecedora, porque significa que conseguiram construir em torno de mim um nível de desumanização muito alto". (ROUSSEFF, 2016) A mulher forte, que conduz as reuniões com pulso firme é também filha, mãe e avó. Quis ser bailarina ou bombeira. Jogou vôlei na adolescência. Gosta de andar de bicicleta e de passear com o cachorro e já frequentou baile de debutantes. Aos 69 anos, fez história e conseguiu a ser a primeira mulher presidenta do Brasil. Enfrentou a ditadura do passado e do presente. Já sobre o processo de finalização como o título do produto, capa e contracapa, notei que era necessário englobar o que precisávamos (a questão política e a questão de gênero). Presente entre significados e significâncias: o artigo "a" no "presidenta", tantas vezes negado à Dilma pela misoginia e o "ela" que representa todas nós, todas elas. Ela, Presidenta: o golpe misógino na democracia, não poderia se encaixar melhor com todas as indagações e reflexões aqui discutidas. Em tempo, encontrei nas redes sociais uma publicação que mostrava que o retrato de Dilma Rousseff não estampava o mural do Palácio do Planalto, juntos com os demais ex-presidentes da república. Decidi assim que essa seria a contracapa do produto. Já a ilustração principal, isto é, a capa do produto, trouxe o Palácio do Planalto com a silhueta da presidenta Dilma em frente à rampa do prédio. A intenção é enfatizar a força da presidenta e, simbolicamente, da mulher. A intenção é simbolizar que, se há uma coisa que mulher pode, é poder! [1]Carlos Marighella foi um político, guerrilheiro e escritor brasileiro; a partir de 1964, tornou-se um dos principais organizadores da luta contra a ditadura militar. [2]Olga Benário era uma revolucionária que defendia o comunismo e lutava para acabar com as desigualdades e injustiças sociais. Em 1942, morreu executada na câmara de gás pelos nazistas. [3] Referência ao perfil de Marcela Temer, atual primeira-dama, publicado pela Revista Veja. [4]O deputado Jair Bolsonaro dedicou seu voto a favor do impeachment de Dilma ao torturador da ditadura militar, Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, sendo o único condenado pela justiça por sequestro e tortura.
 
CONSIDERAÇÕES
Entender o impeachment de Dilma Rousseff como um atentado à democracia alimentado pela violência de gênero institucionalizada, foi fundamental para o meu processo de formação como jornalista, mulher e feminista. Essa elucidação foi crucial para conferir a HQ produzida uma marca de autenticidade que, a meu ver, oferece relevância à narrativa construída. O resultado final desse esforço não traz novos episódios à cena política, mas organiza os fatos que já conhecemos sob uma ótica que revele uma dimensão ainda pouco discutida. O levantamento de informações me permitiu enxergar uma das muitas narrativas do golpe e, daí, conferir forma àquela que se conectava mais profundamente à minha subjetividade e à minha militância. Acredito que a HQ "Ela, Presidenta" levanta, de forma informada e consistente, as bandeiras que sempre hasteei, o que me fez crescer pessoal e profissionalmente. Ao mesmo tempo, este foi um projeto doloroso, difícil de ser executado enquanto mulher. A cada golpe misógino que pesquisava, sentia que, na mesma medida, era golpeada. Descobri o quanto a temática sobre violência de gênero é invisibilizada nos circuitos de informação e, podemos concluir com este projeto o quanto o sistema patriarcal é funcional para quem dele se beneficia. Podemos refletir sobre a primeira mulher na Presidência da República não ter concluído seu governo, para o qual foi eleita democraticamente, e podemos assim, provar que a misoginia e o machismo obtiveram peso significativo nessa decisão. Ainda assim, a luta das mulheres segue diária e implacável. Dilma entra para a história do país e somo minha voz à dela e a de outras mulheres para que possamos adquirir o espaço e o reconhecimento que nos pertence. Este trabalho é também por aquelas que, por diferentes motivos, nunca conseguiram esse lugar; por todas aquelas que perderam a força e pelas que nunca tiveram, em vida, a oportunidade de resistir e não temer. Amanhã há de ser outro dia, outro dia de luta.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁICAS
BOFF, Ediliane. “De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos”. São Paulo, (USP) 2014.

BORGES, Gabriela. “Quadrinhos machistas e feministas”. Disponível em: . Acesso em: 13/08/16.

IG, Câmara e impeachment. Disponível em:਀㰀栀琀琀瀀㨀⼀⼀甀氀琀椀洀漀猀攀最甀渀搀漀⸀椀最⸀挀漀洀⸀戀爀⼀瀀漀氀椀琀椀挀愀⼀㈀ ㄀㘀ⴀ 㐀ⴀ㄀㠀⼀挀漀渀昀椀爀愀ⴀ琀爀攀稀攀ⴀ洀漀洀攀渀琀漀猀ⴀ洀愀爀挀愀渀琀攀猀ⴀ搀愀ⴀ瘀漀琀愀挀愀漀ⴀ搀漀ⴀ椀洀瀀攀愀挀栀洀攀渀琀⸀栀琀洀氀㸀 䄀挀攀猀猀漀 攀洀㨀 ㈀㠀⼀ ㌀⼀㈀ ㄀㜀

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