Entrevista com o professor Antonio Hohlfeldt
Realizada em 6 de novembro de 2015 e 11 de maio de 2016
Pesquisa e roteiro: Alice Melo
Entrevistadores: Ana Paula Goulart e Cláudio Ornellas
Transcrição: Helio Cantimiro
Edição: Cláudio Ornellas
Começamos pedindo para você nos dizer seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
Antonio Carlos Hohlfeldt. Não uso Carlos, mas o nome é este. Nasci em 22 de dezembro de 1948, em Porto Alegre.
Quais são os nomes de seus pais?
O meu pai é Paulo Hohlfeldt Filho. Era, como se dizia na época, contador. E a mãe era Yara Sperb Hohlfeldt – como se dizia na época, dona de casa ou do lar.
Qual foi a sua formação?
Bom, eu sou do tempo em que ainda havia primário e ginásio. Eu comecei a estudar em 1955, em um colégio lassallista. Lá, eu fiz as cinco séries primárias, os quatro anos de ginásio, nesse colégio lassallista, que era na Zona Norte de Porto Alegre. Depois disso, eu fui para um colégio público, que já tinha sido o melhor colégio de Porto Alegre, Colégio Estadual Julio de Castilhos. Na época, era mais um colégio do estado, não era mais tão importante. Para mim, foi importante eu descobrir a vida leiga, vamos dizer assim, perder a virgindade intelectual, porque realmente foi outro universo, completamente diverso. Eu fiz três anos do curso clássico. Naquela época, a gente escolhia entre científico e clássico. Como eu tinha a ideia de ser escritor, portanto tinha optado por fazer jornalismo, como modo de sobreviver, então eu fui fazer o clássico. Lá, eu encontrei alguns colegas de sala de aula que foram muito importantes como convivência. E hoje dois deles, pelo menos, são nomes de referência na literatura, um deles o João Gilberto Noll, que ainda está vivo, cuja casa eu frequentava. Por causa dele, eu fiz o vestibular de Letras. E o outro, mais adiante, foi o Caio Fernando Abreu. No grupo também, que eu vim a descobrir muitos anos depois, tinha um rapaz, cuja casa eu também frequentava, era muito amigo meu, que era o Luiz Eurico Tejera Lisbôa. O Luiz Eurico, muitos anos depois, a Veja fez uma matéria de capa mostrando que a Suzana Lisbôa, que era a companheira dele, tinha conseguido localizá-lo enterrado clandestinamente no cemitério de Perus, em São Paulo. Ele foi provavelmente o primeiro desses vários líderes estudantis que na época fizeram a guerrilha e foram assassinados pela ditadura. Eu nunca soube que o Luiz Eurico tivesse qualquer atividade política, partidária ou coisa desse tipo. Convivia muito com ele, ia para a casa dele estudar. O Nei Lisboa é irmão dele, porque o Nei era um gurizinho de quatro, cinco anos quando eu ia na casa do Luiz Eurico. Essa descoberta da Veja, essa história toda, me tocou muito, e eu fiz um artigo emocionado no Correio do Povo. O dono do jornal me permitiu publicá-lo. O velho Breno Caldas era um cara bastante liberal. Esses artigos tinham que ter um visto dele, com uma canetinha esferográfica verde. De noite, quando chegava lá, ele liberava ou não. Ele liberou esse. E, algum tempo depois, nessa altura eu já era vereador pelo PT, a Suzana me procurou, pedindo que eu a ajudasse a organizar um livro de poemas do Luiz Eurico – poemas manuscritos, escritos em papel de pão, em guardanapos, em folhas de agenda, dos encontros que eles tinham rapidamente, clandestinamente. Uns 50 poemas, talvez, alguma coisa assim. Eu achei que, mais do que um carinho com ele, era um dever político meu organizar isso e, sobretudo, insistir em quebrar uma imagem que era assim: “Quem era guerrilheiro, quem era da esquerda, quem fez movimento armado odiava as pessoas”. Então, ao contrário, eu fiz um livro que se chamava “Condições Ideais para o Amor”, o título de um poema dele, inclusive. Já teve duas edições. A gente conseguiu fazer pelo Instituto Estadual do Livro. Na época, o governo do estado era do PDT, era o Alceu Collares o governador, e o diretor do Instituto Estadual do Livro era o editor de uma editora particular que estava lá no instituto. Um pessoal que eu conhecia muito. Eu fiz a proposta, imediatamente eles aceitaram. É um livro distribuído, não é vendido. A Suzana faz questão de fazer essa distribuição para contar um pouco do outro lado do Luiz Eurico. Ficou muito a ideia: “Ah, ele é um comunista, um guerrilheiro”.
Voltando a sua formação...
Voltando para trás: no clássico, então, eu acabei fazendo o meu projeto, que era fazer o jornalismo. Eu fiz o vestibular na PUC. Entrei no curso de jornalismo e, ao mesmo tempo, como eu disse, por causa do João Gilberto, fui fazer o vestibular para a URGS (hoje UFRGS), para Letras. Eu comecei cursando Letras de manhã e o Jornalismo à noite, na PUC. Claro que pagando, na PUC tinha que pagar. Nesse meio-tempo – eu também cantava, vinha de movimento coral –, no coral que a prefeitura municipal mantinha junto com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, para cantar. Começaram a ser produzidas óperas em Porto Alegre. Aí eu saí do Jornalismo à noite, passei para a tarde, para poder ter tempo livre de noite para fazer as óperas, como eu fiz. Eu estudava de manhã e de tarde e cantava as óperas de noite. No meio-tempo, houve alguns problemas financeiros com o meu pai, eu parei o Jornalismo – não parei Letras, curiosamente –, porque o Jornalismo tinha que pagar. Continuei em Letras, de tarde trabalhava com o meu pai, de noite continuava cantando ópera. Tive essa experiência bastante mista. Mas isso ajudou, porque, quando eu entro no Jornalismo, ainda na faculdade, quando eu passo a fazer programas de rádio com colegas meus que tinham um programa em uma emissora de Porto Alegre, a Rádio Metrópole, e quando eu começo a querer escrever em jornal... Eu fui procurar, evidentemente, o Correio do Povo. Foi onde, desde guri, eu era colaborador, como menino, porque o Correio do Povo tinha uma página infantil nos domingos, que era o Correio Infantil. Lá, a gente publicava umas historinhas, respondia uns concursos, ganhava uns livrinhos de prêmio. Então eu já conhecia um pouco o pessoal.
O início de sua vida profissional em jornalismo.
Sim. Eu fui para o jornal, e o velho Paulo Fontoura Gastal, que era o editor da área cultural, que incluía a página infantil, incluía a editoria feminina etc., me recebeu muito bem. Eu passei a escrever umas críticas sobre cinema, não no Correio, mas na Folha da Tarde, que era o outro jornal da Caldas Júnior. O Correio era o matutino, sisudo, sério, standard, e a Folha era um jornal mais leve. Eu escrevia alguns comentários na Folha da Tarde. Em seguida, o Gastal bolou um processo chamado Equipe das Terças, que era um negócio muito legal. Nós éramos todos jovens que gostávamos de cinema, e o Gastal tinha criado, alguns anos antes, o Clube de Cinema de Porto Alegre, que é um dos clubes de cinema mais antigos do Brasil. Existe ainda hoje. Tinha contato com clubes de cinema em Montevidéu, em Buenos Aires e foi o responsável por fazer o primeiro festival de cinema de Porto Alegre, que geraria o Festival de Gramado, que existe até hoje. Porque o secretário de Turismo de Gramado gostou da mostra de Porto Alegre e pediu para levar os filmes para lá. E a coisa começou nesse sentido. Eu estava, para variar, enrolado nisso aí. O Gastal convidou alguns jovens para fazer parte dessa Equipe das Terças. Nós tínhamos estudantes de Direito, basicamente, estudante de Economia, estudante de Letras... Para entender: naquela época, todos os filmes eram lançados na segunda-feira. Então, na segunda-feira, à 1 h da tarde, nós todos estávamos na redação, e a gente distribuía os filmes para todo mundo ver ao mesmo tempo. Ou seja, entre as 2 h da tarde e as 6 h da tarde... Na pior das hipóteses – se o filme não estava nos cinemas do Centro, estava em algum bairro, só tinha sessão noturna – até as 10 h e meia da noite, todos nós tínhamos visto os filmes lançados, e o Gastal distribuía 20, 30 ou 40 linhas, conforme uma avaliação prévia de importância do filme, que a gente já sabia pelas críticas que vinham do Rio, de São Paulo, ou vinham do exterior, conforme o filme. A gente saía, assistia ao filme, voltava, sentava, escrevia as 20, 30 ou 40 linhas. No outro dia, saía uma página inteira do jornal com todos os filmes comentados. Se o filme era muito bom, se fosse um Antonioni, um Fellini, um Godard, saía em uma terça e, na outra terça, saía um segundo comentário. Então, você sustentava, digamos assim, os comentários. Ou, se o filme era extraordinariamente bom, dois faziam o comentário sobre o mesmo filme. Aquilo foi um sucesso. Anos mais tarde, o Emanuel Medeiros Vieira, que se tornaria depois um contista excelente, de Santa Catarina, fez uma edição dessas crônicas da terça-feira. Eu tenho a minha parte, as páginas que têm comentário meu, eu tenho guardadas. Eu tenho um arquivo inteiramente organizado de tudo que eu escrevi na vida. Roteiro de rádio, esses comentários... Eu tenho tudo guardado. A partir daí, eu fui ficando no jornal como colaborador. O Emanuel hoje é funcionário, ele estudou Direito, mas se tornou assessor de imprensa na Câmara Federal, na Câmara dos Deputados. Mora hoje em Brasília. A essa altura, já está aposentado. Voltando, no período de férias de verão, eu pegava um ônibus, ia para São Paulo, ficava uma semana, assistia a filmes, assistia a peças de teatro, fazia entrevista com os caras. Depois, pegava outro ônibus, ia para o Rio, passava mais uma semana, assistia a mais umas coisas, ia a uma exposição... Voltava com um material fantástico. Aí escrevia esse material ao longo de meses, e o jornal ia me pagando. Chegou um momento em que eu ganhava mais do que um jornalista normal, de carteira assinada, pelas colaborações, porque eu era uma maquininha para trabalhar.
Trabalhava apenas na área de cultura?
Só na área de cultura. Eu fiquei dentro da área de cultura, fiquei me especializando em cinema e teatro nesse primeiro momento. Depois, quando sou transformado em funcionário do Correio do Povo, eu entro na editoria de cultura. Aí eu estendo isso também para a literatura. Nesse meio-tempo, eu já tinha terminado, ou estava terminando, o curso de Letras. E eu tinha feito um bom curso de Letras, peguei alguns professores extraordinários – aliás, para variar, todos cassados depois do AI-5 – na UFRGS. Por exemplo, o Dionísio Toledo, que era o meu professor de crítica literária, que foi dar aula na Sorbonne, em Paris, para sobreviver. Eram uns caras realmente extraordinários. O Guilhermino Cesar, que é um mineiro, poeta, lá dos anos 1920, que foi parar no Rio Grande do Sul e trabalhou com os intendentes do governo do estado – e ajudou a montar um projeto de ocupação do noroeste do estado do Rio Grande do Sul, nas margens do Alto Uruguai, na fronteira com a Argentina –, era o professor de literatura brasileira e de teoria, mas especialista em literatura brasileira. O Donaldo Schüller, que ainda é vivo e trabalha com literatura grega, mas fazia crítica de poesia, foi um professor extraordinário. Eu fiz um curso dele sobre Drummond que é, para mim, uma coisa inesquecível, até hoje. O Celso Luft era o nosso grande professor de língua portuguesa, e tinha uma visão extremamente aberta em relação à língua portuguesa. O Celso Loureiro Chaves era excelente professor de literatura, trabalhava com o Guilhermino Cesar. A partir daí, então, as coisas foram acontecendo. Quer dizer, eu me especializei mais, realmente, na área de literatura e de teatro. Deixei um pouquinho de lado o cinema. Passei a ajudar o Gastal a editar o Caderno de Sábado, que era o nosso suplemento literário, naquela época dos booms... Tivemos o suplemento do Estadão, tivemos o JB e, depois, houve o suplemento de Minas. E tinha o nosso, o Caderno de Sábado. Que eram fantásticos. Eu cuidava de fazer aquilo que, na época, era incrível: eu escrevia para Deus e todo o mundo. Não tinha internet, não tinha telefone, era carta. Nós fazíamos edições especiais. O jornal era semanal, com 16 páginas, tabloide. Mas a gente programava, por exemplo, fazer suplemento sobre a Rachel de Queiroz. Eu escrevia antecipadamente para o pessoal, e o pessoal me mandava. Claro, eu complementava muito isso, porque todo escritor que ia a Porto Alegre era eu que entrevistava. Aquelas matérias hoje impensáveis: dez, 12 laudas, tamanhos enormes. As entrevistas eram imensas, fantásticas. Com a Feira do Livro, por exemplo, o pessoal ia para lá. Era em outubro, eu passava da manhã à noite no jornal. Entrava no jornal às 9h da manhã e saía à 1h, 2h da manhã. Porque você entrevistava, escrevia. Depois, eu fechava o jornal, ainda editava o jornal na madrugada. Então, eu conhecia o pessoal. Ia aos seminários de literatura, aproveitava para conversar com o pessoal. Naquela época, tinha aqueles seminários. Tinha o Concurso Nacional de Contos, que o governo do Paraná fazia. Havia sempre os seminários sobre literatura. Ali, fui conhecendo o Affonso Romano de Sant’Anna – estou tentando me lembrar–, o Décio Pignatari, entre outros, nas várias edições. Conheci o João Antônio, conheci o João Ubaldo Ribeiro. Foram alguns dos premiados como contistas naquela época. Eu fiz um conjunto de amizades que era fundamental no sentido de dar uma dinâmica para o suplemento: “Você quer saber da literatura brasileira, você pega o Caderno de Sábado. Você tem todo mundo lá”. O João Antônio tinha uma maneira fantástica de fazer as coisas: máquina de escrever, papel carbono – uns quatro, cinco papéis carbono –, ele digitava um conto, um artigo, separava, botava em uns envelopinhos e mandava para todo mundo. Quando ele faleceu e o material dele foi para a Unesp de Assis, o pessoal encontrou duas cadernetas de endereços: uma que era a normal e a outra que era a especial, que eram esses caras para quem ele mandava as coisas. Eu estava lá nessa cadernetinha. Por exemplo, aquele artigo dele, “Corpo a Corpo com a Vida”, em que ele discute a questão do jornalismo, esse artigo saiu primeiro no Caderno de Sábado, porque eu fui mais rápido para publicar. Ele mandava para cinco lugares ao mesmo tempo. Casualmente, nós fomos mais rápidos para publicar. Deu espaço, a gente publicou, saiu na frente. Depois, ele juntou em um volume. Então, naquele momento, eu tinha uma relação enorme com o pessoal da literatura. Essas coisas meio malucas que a gente faz... Eu tinha correspondência com o Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Eu mandava bilhete para ele, ele respondia, mandava o livro. Tenho quase todos os livros autografados. Eu estou fazendo um verbete sobre a Clarice Lispector, agora, para um dicionário de literatura. Zaffari, uma companhia de supermercado, edita um dicionário a cada ano, e este ano é a Clarice. Eu estou fazendo sobre a crônica da Clarice. Eu fui olhar, quase todos os livros da Clarice estão assinados. O que a José Olympio publicava, o que a Editora Sabiá publicava, o que a Martins publicava em São Paulo, depois a Record um pouco mais adiante, eu tenho tudo, tudo, tudo autografado.